domingo, 16 de novembro de 2008

5. A Filosofia política Antiga

A vida boa

Quando lemos os filósofos gregos e romanos, observamos que tratam a política como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Embora considerem a forma mais alta de vida a do sábio contemplativo, isto é, do filósofo, afirmam que, para os não-filósofos, a vida superior só existe na Cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade.
Política e Filosofia nasceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se que “a Filosofia é filha da polis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. Por sua origem, a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político, elaborando teorias para explicar sua origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político.

A posição dos sofistas

Para os sofistas, a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nomos. A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso.
Se a polis e as leis são convenções humanas, podem mudar, se mudarem as circunstâncias. A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso, isto é, a expressão pública da vontade da maioria, obtida pelo voto.
Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões.
A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia, conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários. O debate dos opostos, a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos, deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.

A posição de Platão

Para Platão, os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura. Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade: a alma concupiscente ou desejante (situada no ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os necessários à sobrevivência, quanto os que, simplesmente, causam prazer; a alma irascível ou colérica (situada no peito), que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica ao conhecimento, tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência, quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento.
Também a polis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade sob as leis.
Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente (os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a alma irascível (a agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a. O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional (pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à irascível, a virtude da coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das almas, a superior dominando as inferiores.
O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade. Como realizar a Cidade justa? Pela educação dos cidadãos – homens e mulheres (Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluí-las). Desde a primeira infância, a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças, educando-as para as funções necessárias à Cidade.
A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção: as menos aptas serão destinadas à classe econômica, enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos. Depois, estes que permaneceram estudando passarão por outra seleção: os menos aptos irão para a classe dos militares e os demais estudarão Filosofia e se tornarão os legisladores e dirigentes da cidade. Estudarão Filosofia , pois é ela que lhes dará a sabedoria para distinguir o justo do injusto.
A Cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares -, ou na dos militares – que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá-la com justiça.

A posição de Aristóteles

Para Aristóteles a justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder. Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza, os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos.
Há Cidades que valorizam a honra (isto é, a hierarquia social baseada no sangue, na terra e nas tradições), julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só: tem-se a monarquia, onde é justo que um só participe do poder. Há Cidades que valorizam a virtude como excelência de caráter (coragem, lealdade, fidelidade ao grupo e aos antepassados), julgando que o poder cabe aos melhores: tem-se a aristocracia, onde é justo que somente alguns participem do poder. Há Cidades que valorizam a igualdade (são iguais os que são livres), consideram a diferença entre ricos e pobres econômica e não política, julgando que todos possuem o direito de participar do poder: tem-se a democracia, onde é justo que todos governem.
Enquanto Platão se preocupa com a educação e formação do dirigente político — o governante filósofo —, Aristóteles se interessa pela qualidade das instituições políticas (assembléias, tribunais, forma de coleta de impostos, distribuição da riqueza, organização do exército etc). Com isso, ambos legam para as teorias políticas duas maneiras de conceber onde se situa a justiça na cidade: platonicamente, ela depende das virtudes do dirigente; aristotelicamente, ela depende das virtudes das instituições.



Responder as seguintes questões:

A vida boa
1. Qual era para os filósofos gregos e romanos, a finalidade superior da vida humana?
2. Qual era o significado que eles davam para a vida boa?
3. Qual a função do filósofo em relação à política?
4. Por que se diz que a Filosofia é filha da pólis?
5. O que foram os filósofos pré-socráticos além de filósofos?
A posição dos sofistas
6. Como nasce a pólis segundo os sofistas?
7. O que é a justiça segundo eles?
8. Qual a finalidade da política segundo eles?
9. Qual a função da justiça em relação à mudança nas leis?
10. Como se realizam mudanças nas leis sem afetar a ordem política?
11. O que ensinavam os sofistas?
12. Como se consegue a concórdia entre os cidadãos?
A posição de Platão
13. Qual a semelhança entre a alma e a pólis segundo Platão?
14. Segundo Platão, como a alma é constituída?
15. E como a pólis é formada?
16. De que modo o homem pode ser injusto?
17. E como é o homem justo?
18. Como se estabelece a justiça na cidade (justiça política)?
19. Como realizar a justiça na cidade?
20. Como é o processo educativo da cidade idealizada por Platão?
21. Por que, nesta cidade ideal, os produtores e militares não devem governar?
22. Por que para Platão o filósofo é quem deve governar a cidade?
A posição de Aristóteles
23. Como se define a justiça política para Aristóteles?
24. Quais as três maneiras de organizar o governo da cidade?
25. Qual a grande diferença das teorias políticas de Platão e Aristóteles?

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

4. Sócrates e os Sofistas

Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes militares, Atenas tornou-se o centro da vida social, política e cultural da Grécia, vivendo seu período de esplendor, conhecido como o Século de Péricles.
É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega possuía, entre outras, duas características de grande importância para o futuro da Filosofia.
Em primeiro lugar, a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis.
Em segundo lugar, e como conseqüência, a democracia, sendo direta e não por eleição de representantes, garantia a todos a participação no governo, e os que dele participavam tinham o direito de exprimir, discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar. Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes: mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os estrangeiros.)
Ora, para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias, o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com isso, uma mudança profunda vai ocorrer na educação grega.
Antes da instituição da democracia, as cidades era dominadas pelas famílias aristocráticas, senhoras das terras e do poder militar. Essas famílias, valendo-se dos dois grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, criaram um padrão de educação, próprio dos aristocratas. Esse padrão afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era formado pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de Tróia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando Homero e Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis, a principal delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a Areté (excelência e superioridade), própria dos melhores, os aristói.

Os sofistas

Quando a economia agrária foi sendo suplantada pelo artesanato e pelo comércio, surgiu nas cidades (particularmente em Atenas) uma classe social urbana rica que desejava exercer o poder político, até então privilégio da classe aristocrática. É para responder aos anseios dessa nova classe social que a democracia será instituída. Com ela, o poder vai sendo retirado dos aristocratas e passado aos cidadãos. Dessa maneira o antigo ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro. O ideal da educação do Século de Péricles já não é a formação do jovem guerreiro, belo e bom, e sim a formação do cidadão.
Ora, qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania? Quando opina, discute, delibera e vota nas assembléias. Assim, a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador, isto é, aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política.

“Não acreditamos que os discursos entravem a ação; o que nos parece prejudicial é não nos esclarecermos primeiro através do discurso sobre o que é preciso fazer” Péricles.

Para dar aos jovens essa educação, substituindo a educação antiga dos poetas, surgiram, na Grécia, os sofistas, que são os primeiros filósofos do período socrático. Os sofistas mais importantes foram: Protágoras de Abdera (481-411 a.C.), Górgias de Leontini (485-380 a.C.) e Isócrates de Atenas (436-338 a.C.).
Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida da polis. Apresentavam-se como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos.
Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária, não-A, de modo que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão.
Como viajaram muito e conheceram muitas lugares e culturas diferentes, viram que cada povo tinha uma concepção muito diferente e até contrária sobre a realidade. Concluíram daí que não existia uma verdade única, absoluta, mas que a verdade é definida pelo homem, variando portanto de indivíduo para indivíduo, de povo a povo, dependendo das circunstâncias históricas e sociais a que os homens estão submetidos. Chamamos a isso relativismo.

Alguns pensamentos dos sofistas

“O homem é a medida de todas as coisas” Protágoras.
“O bom orador é capaz de convencer qualquer pessoa sobre qualquer coisa” Górgias.
“O ser não existe; ainda que existisse não se poderia conhecê-lo; ainda que o ser fosse conhecido, seu conhecimento seria incomunicável pela linguagem" Górgias.


Sócrates contra os sofistas

O filósofo Sócrates, rebelou-se contra os sofistas, dizendo que não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, defendendo qualquer idéia, se isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos jovens, pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade.
Como homem de seu tempo, Sócrates concordava com os sofistas em um ponto: por um lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade grega, e, por outro lado, os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro. (Nota: Historicamente, há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não possuímos seus textos. Restaram fragmentos apenas. Por isso, nós os conhecemos pelo que deles disseram seus adversários - Platão, Xenofonte, Aristóteles - e não temos como saber se estes foram justos com aqueles. Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático, isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses, enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da sociedade.)
Discordando dos antigos poetas, dos antigos filósofos e dos sofistas, o que propunha Sócrates?
Propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo, conhecer-se a si mesmo. A expressão “conhece-te a ti mesmo” que estava gravada no pórtico do templo de Apolo, patrono grego da sabedoria, tornou-se a divisa de Sócrates.
Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de si mesmos a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros, é que se diz que o período socrático é antropológico, isto é, voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade.
O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense Platão.
Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates?
O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um: “Você sabe o que é isso que você está dizendo?”, “Você sabe o que é isso em que você acredita?”, “Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?”, “Você diz”, falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a justiça é importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas: o que é a amizade?”
Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, sobre os valores nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas deixavam os interlocutores embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando tentavam responder ao célebre “o que é?”, descobriam, surpresos, que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas crenças, seus valores e suas idéias.
Mas o pior não era isso. O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse por elas ou para elas, que soubesse as respostas às perguntas, como os sofistas pareciam saber, mas Sócrates, para desconcerto geral, dizia: “Eu também não sei, por isso estou perguntando”. Donde a famosa expressão atribuída a ele: “Só sei que nada sei”.
A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia. O que procurava Sócrates? Procurava a definição daquilo que uma coisa, uma idéia, um valor é verdadeiramente. Procurava a essência verdadeira da coisa, da idéia, do valor. Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das idéias e dos valores.
Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e necessária de alguma coisa.
Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela — pois nossa opinião sobre ela pode variar — e sim: O que é a beleza? Qual é a essência ou o conceito do belo? Do justo? Do amor? Da amizade?
Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa?
Ora, as perguntas de Sócrates se referiam a idéias, valores, práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também sobre a polis. Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.
Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar. Por isso, eles o acusaram de desrespeitar os deuses, corromper os jovens e violar as leis. Levado perante a assembléia, Sócrates não se defendeu e foi condenado a tomar um veneno — a cicuta — e obrigado a suicidar-se.
Por que Sócrates não se defendeu? “Porque”, dizia ele, “se eu me defender, estarei aceitando as acusações, e eu não as aceito. Se eu me defender, o que os juízes vão exigir de mim? Que eu pare de filosofar. Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia”.
O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada Apologia de Sócrates, isto é, a defesa de Sócrates, feita por seus discípulos, contra Atenas. Aliás, Sócrates nunca escreveu. O que sabemos de seus pensamentos encontra-se nas obras de seus vários discípulos, e Platão foi o mais importante deles.
Vejamos alguns fragmentos de sua defesa ante o tribunal de Atenas. Sócrates foi levado ao tribunal por seus concidadãos e condenado à morte acusado de “pesquisar indiscretamente o que há sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento”. Foi acusado também de “corromper a juventude e de não crer nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades novas”.O filósofo afirma que as acusações são mentiras devidas a uma má reputação que ele adquiriu perante os moradores da cidade por causa do seu modo de agir, cujas motivações tenta explicar:

Texto - Apologia de Sócrates

Um de vós poderia intervir: "Afinal, Sócrates, qual é a tua ocupação? Donde procedem as calúnias a teu respeito? Naturalmente, se não tivesses uma ocupação muito fora do comum, não haveria esse falatório, a menos que praticasses alguma extravagância. Dize-nos, pois, qual é ela, para que não façamos nós um juízo precipitado." Teria razão quem assim falasse; tentarei explicar-vos a procedência dessa reputação caluniosa. Ouvi, pois. Alguns de vós achareis, talvez, que estou gracejando, mas não tenhais dúvida: eu vos contarei toda a verdade. Pois eu, Atenienses, devo essa reputação exclusivamente a uma ciência. Qual vem a ser a ciência? A que é, talvez, a ciência humana. É provável que eu a possua realmente. [...] Para testemunhar a minha ciência, se é uma ciência, e qual é ela, vos trarei o deus de Delfos (em Delfos havia um templo, onde o deus Apolo dava oráculos, predizendo o futuro). Conhecestes Querefonte, decerto. Era meu amigo de infância e também amigo do partido do povo e seu companheiro naquele exílio (A alusão é ao exílio sofrido pelos partidários da democracia, no ano 404 a.C., quando se instalou em Atenas a tirania dos Trinta) de que voltou conosco. Sabeis o temperamento de Querefonte, quão tenaz [era] nos seus empreendimentos. Ora, certa vez, indo a Delfos, arriscou esta consulta ao oráculo [...] — ele perguntou se havia alguém mais sábio que eu; respondeu a Pítia (assim se chamava a sacerdotisa do templo de Delfos, que formulava os oráculos) que não havia ninguém mais sábio. Para testemunhar isso, tendes aí o irmão dele, porque ele já morreu. Examinai por que vos conto eu esse fato; é para explicar a procedência da calúnia. Quando soube daquele oráculo, pus-me a refletir assim: "Que quererá dizer o deus? Que sentido oculto pôs na resposta? Eu cá não tenho consciência de ser nem muito sábio nem pouco; que quererá ele, então, significar declarando-me o mais sábio? Naturalmente, não está mentindo, porque isso lhe é impossível." Por longo tempo fiquei nessa incerteza sobre o sentido; por fim, muito contra meu gosto, decidi-me por uma investigação, que passo a expor. Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sábio que eu, quando tu disseste que eu o era!" Submeti a exame essa pessoa — é escusado dizer o seu nome; era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A conseqüência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei." Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábios e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros. Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia tornando odiado; não obstante, parecia-me imperioso dar a máxima importância ao serviço do deus. Cumpria-me, portanto, para averiguar o sentido do oráculo, ir ter com todos os que passavam por senhores de algum saber. Pelo Cão, Atenienses! Já que vos devo a verdade, juro que se deu comigo mais ou menos isto: investigando de acordo com o deus, achei que aos mais reputados pouco faltava para serem os mais desprovidos, enquanto outros, tidos como inferiores, eram os que mais visos tinham de ser homens de senso. [...] O provável, senhores, é que, na realidade, o sábio seja o deus e queira dizer, no seu oráculo, que pouco valor ou nenhum tem a sabedoria humana; evidentemente se terá servido deste nome de Sócrates para me dar como exemplo, como se dissesse: "0 mais sábio dentre vós, homens, é quem, como Sócrates, compreendeu que sua sabedoria é verdadeiramente desprovida do mínimo valor." Por isso não parei essa investigação até hoje, vagueando e interrogando, de acordo com o deus, a quem, seja cidadão, seja forasteiro, eu tiver na conta de sábio, e, quando julgar que não o é, coopero com o deus, provando-lhe que não é sábio. Essa ocupação não me permitiu lazeres para qualquer atividade digna de menção nos negócios públicos nem nos particulares; vivo numa pobreza extrema, por estar ao serviço do deus. Além disso, os moços que espontaneamente me acompanham — e são os que dispõem de mais tempo, os das famílias mais ricas — sentem prazer em ouvir o exame dos homens; eles próprios imitam me muitas vezes; nessas ocasiões, metem-se a interrogar os outros; suponho que descobrem uma multidão de pessoas que supõem saber alguma coisa, mas pouco sabem, quiçá nada. Em conseqüência, os que eles examinam se exasperam contra mim e não contra si mesmos, e propalam que existe um tal Sócrates, um grande miserável, que corrompe a mocidade [...].
[...]
Alguém, talvez, pergunte: "Não te pejas, ó Sócrates, de te haveres dedicado a uma ocupação que te põe agora em risco de morrer?" Eu lhe daria esta resposta justa: "Estás enganado, homem, se pensas que um varão de algum préstimo deve pesar as possibilidades de vida e morte em vez de considerar apenas este aspecto de seus atos: se o que faz é justo ou injusto, de homem de brio ou de covarde. No teu entender, não teriam méritos os semideuses que pereceram em Tróia; entre eles o filho de Tétis, que desdenhava tanto o perigo em confronto com o passar por uma vergonha. Querendo ele matar a Heitor, sua mãe, uma deusa, lhe disse parece que mais ou menos estas palavras: "Filho, se matares a Heitor para vingar a morte de teu amigo Pátroclo, tu próprio morrerás, pois, dizia ela, o teu destino te espera logo depois de Heitor." Ele, apesar de ouvir a advertência, fez pouco caso do perigo de morte e, porque temia muito mais viver com desonra, respondeu: "Morra eu assim que castigue o culpado, mas não fique por aqui, alvo de risos junto das curvas naus, como um fardo da terra." Cuidas que ele se preocupou com o perigo de morte? [...] mesmo que, apesar disso, me dissésseis: "Sócrates, por ora não atenderemos a Ânito (um dos acusadores) e te deixamos ir, mas com a condição de abandonares essa investigação e a filosofia; se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás"; mesmo, repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos responderia: "Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós; enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: "Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?" E se algum de vós redargüir que se importa, não me irei embora deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu, ficai certos. [...] Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas, mente. Por tudo isso, Atenienses, diria eu, quer atendais a Ânito, quer não, quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes.
[...]
Pode alguém perguntar: "Mas não serás capaz, ó Sócrates, de nos deixar e viver calado e quieto?" De nada eu convenceria alguns dentre vós mais dificilmente do que disso. Se vos disser que assim desobedeceria ao deus e, por isso, impossível é a vida quieta, não me dareis fé, pensando que é ironia; doutro lado, se vos disser que para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e a outros, e que vida sem exame não é vida digna de um ser humano, acreditareis ainda menos em minhas palavras. Digo a pura verdade, senhores, mas convencer-vos dela não me é fácil.
Platão. Apologia de Sócrates.


O método de Sócrates: ironia e maiêutica

Como vimos, Sócrates recusa-se a responder às perguntas que faz aos outros pois que nada sabe. Mas ele se diz capaz de ajudar os outros a respondê-las. Assim, o método de investigação de Sócrates compõe-se em dois momentos, um negativo e outro positivo, denominados ironia e maiêutica. No primeiro momento Sócrates tem a intenção de destruir as concepções de seus interlocutores, mostrando para eles que se consideravam sábios mas não eram. Esse momento chama-se ironia pois em grego ironia significa perguntar. Sócrates era muito habilidoso com as palavras e conseguia fazer com que seu interlocutor se contradissesse. Ele pergunta, por exemplo, “o que é a Justiça?”. Quando seu companheiro lhe dava uma resposta ele começava uma série de questões objetivando entender o que significa o que o autor da afirmação estava dizendo. Com isso ele o levava aos poucos a se contradizer, ou seja, a afirmar o contrário daquilo que tinha afirmado anteriormente. A reação da pessoa variava: uns sentiam ódio, outros admiração. Mas quando pediam para Sócrates responder ele dizia que não sabia dar uma resposta. Uma vez admitida a ignorância poderia começar o segundo momento: a maiêutica socrática. Maiêutica significa parto. A mãe de Sócrates era parteira e ele dizia que também era parteiro. Só que ao invés de parir corpos ele paria idéias. Mas ele mesmo era estéril, não conseguia conceber nenhuma idéia, mas poderia ajudar os outros a retirarem de dentro de si idéias verdadeiras.
Texto - um exemplo da ironia socrática

Trasímaco — Ouve, então. Eu digo que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte. Então, que esperas para me aplaudir? Vais te recusar!
Sócrates — Em primeiro lugar, deixa que eu compreenda o que dizes, pois ainda não entendi. Pretendes que a justiça é o interesse do mais forte. Mas como entendes isso, Trasímaco? Com efeito, não pode ser da seguinte maneira: “Se Polidamas (vencedor dos jogos olímpicos de 408 a.C.) é mais forte do que nós e a carne de boi é melhor para conservar suas forças, não dizes que, também para nós, mais fracos do que ele, esse alimento é vantajoso e ao mesmo tempo justo?”
Trasímaco — És um cínico, Sócrates. Tomas as minhas palavras por onde podes atacá-las melhor!
Sócrates — De forma alguma, nobre homem. Mas exprime-te mais claramente.
Trasímaco — De acordo! Tu sabes que , entre as cidades, umas são tirânicas, outras democráticas, outras aristocráticas.
Sócrates — Logicamente que sei.
Trasímaco — Portanto, o setor mais forte, em cada cidade, é o governo?
Sócrates — Sim.
Trasímaco — E cada governo faz as leis para seu próprio proveito: a democracia, leis democráticas, a tirania, leis tirânicas, e as outras a mesma coisa; estabelecidas as leis, declaram justo, para os governados, o seu próprio interesse, e castigam quem as transgride como violador da lei, culpando-o de injustiça. Em todas as cidades o justo é a mesma coisa, isto é, o que é o mais vantajoso para o governo constituído; ora, este é o mais forte, de onde se segue, para um homem de bom raciocínio, que em todos os lugares o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte.
Sócrates — Agora compreendo o que dizes. Procurarei analisá-lo.
Trasímaco — Analisa-o.
Sócrates — Assim farei. Agora diz-me: não julgas ser justo obedecer aos governantes?
Trasímaco — Julgo.
Sócrates — Mas os governantes são sempre infalíveis ou passíveis de se enganarem?
Trasímaco — É evidente que são passíveis de se enganarem.
Sócrates — Logo, quando elaboram as leis, fazem leis boas e leis más?
Trasímaco — É assim que penso.
Sócrates — As boas leis são aquelas que instituem o que lhes é vantajoso e as más o que lhes é desvantajoso?
Trasímaco — Sim.
Sócrates — Mas o que eles instituíram deve ser obedecido pelos governados; é nisto que consiste a justiça?
Trasímaco — Com certeza.
Sócrates — Logo, na tua opinião, não é apenas justo fazer o que é mais vantajoso para o mais forte, mas também o contrário, o que é desvantajoso.
Trasímaco — Que estás dizendo!?
Sócrates —O que tu mesmo dizes, penso; mas examinaremos melhor. Não concordamos que, às vezes, os governantes se enganam quanto ao que é o melhor, impondo tais leis aos governados? E que, por outro lado, é justo que os governados obedeçam ao que lhes ordenam os governantes? Não concordamos?
Trasímaco — Sim
Sócrates — Então, acreditas também que é justo fazer o que é desvantajoso para os governantes e para os mais fortes, quando os governantes dão ordens que lhes são prejudiciais, porquanto tu afirmas ser justo que os governados façam o que ordenam os governantes. Portanto, sábio amigo Trasímaco, não decorre necessariamente que é justo fazer o contrário daquilo que dizes? Com efeito, ordena-se ao mais fraco que faça o que é prejudicial ao mais forte.
Platão, A República.


O pai da Ética

Sócrates é considerado também o pai da Ética. Na Filosofia, Ética é a disciplina que estuda o agir humano. Como vimos, Sócrates, como os sofistas, achava que o ser humano não pode conhecer o cosmos, como pretendiam os filósofos que o antecederam. Já os sofistas usavam seu conhecimento para convencer os outros de qualquer idéia que fosse proveitosa para si mesmos. Mas Sócrates usava a reflexão filosófica para tentar melhorar a si mesmo e aos seus concidadãos.

"Meu caro, tu, um ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua alma?" Sócrates.

Como vemos na frase acima, Sócrates ia a cada um dos moradores de Atenas e questionava se sua maneira de agir era condizente com suas palavras. Se era justo ou injusto, bom ou mau, corajoso ou covarde etc.

3. Os Filósofos Pré-socráticos



Os primeiros filósofos gregos

De acordo com a tradição histórica, a fase inaugural da filosofia grega é conhecida como período pré-socrático, isto é, anterior a Sócrates.
O período pré-socrático abrange o conjunto das reflexões filosóficas desenvolvidas desde Tales de Mileto (623-546 a.C.) até o aparecimento de Sócrates (468-399 a.C.).
Os pensadores de Mileto: a busca da substância primordial

Quando afirmamos que a filosofia nasceu na Grécia, devemos tornar essa afirmação mais precisa. Afinal, nunca houve, na Antigüidade, um Estado grego unificado. O que chamamos de Grécia nada mais é que o conjunto de muitas cidades-Estado gregas (pólis), independentes umas das outras, e muitas vezes rivais
No vasto mundo grego, a filosofia teve como berço a cidade de Mileto, situada na Jônia, litoral ocidental da Ásia Menor. Caracterizada por múltiplas influências culturais e por um rico comércio, a cidade de Mileto abrigou os três primeiros pensadores da história ocidental a quem atribuímos a designação de filósofos. São eles: Tales, Anaximandro e Anaxímenes.
Destaca-se, entre os objetivos desses primeiros filósofos, a construção de uma cosmologia (explicação racional e sistemática das características do universo) que substituísse a antiga cosmogonia (explicação sobre a origem do universo baseada nos mitos).
Por isso tentaram descobrir, com base na razão e não na mitologia, o princípio substancial ou princípio primordial (a arché, em grego) existente em todos os seres materiais. Isto é, pretendiam encontrar a “matéria-prima” de que são feitas todas as coisas.

Tales de Mileto

Tales (623-546 a.C.) costuma ser considerado o primeiro pensador grego, o “pai da Filosofia”. Na condição de filósofo, buscou a construção do pensamento racional em diversos campos do conhecimento que, hoje, não são considerados especialidades filosóficas. Foi astrônomo e chegou a prever o eclipse total do Sol ocorrido em 28 de maio de 585 a.C. Na área da geometria demonstrou, por exemplo, que todos os ângulos inscritos no meio círculo são retos e que em todo triângulo a soma de seus ângulos internos é igual a 180 graus.
Procurando fugir das antigas explicações mitológicas sobre a criação do mundo, Tales queria descobrir um elemento físico que fosse constante em todas as coisas. Algo que fosse o princípio unificador de todos os seres.
Inspirando-se provavelmente em concepções egípcias, acrescidas de suas próprias observações da vida animal e vegetal, concluiu que a água é a substância primordial, a origem única de todas as coisas. Para ele, somente a água permanece basicamente a mesma em todas as transformações dos corpos, apesar de assumir diferentes estados — sólido, líquido e gasoso.

Anaximandro de Mileto

Anaximandro (610-547 a.C.) procurou aprofundar as concepções de Tales sobre a origem única de todas as coisas. Em meio a tantos elementos observáveis no mundo natural — água, fogo, ar etc —, ele acreditava não ser possível eleger uma única substância material como o prinípio primordial de todos os seres, a arché.
Para Anaximandro, esse princípio é algo que transcende os limites do observável, ou seja, não se situa numa realidade ao alcance dos sentidos. Por isso denominou-a ápeiron, termo grego que significa “o indeterminado”, “o infinito”. O ápeiron seria a “massa geradora” dos seres, contendo em si todos os elementos contrários.

Anaxímenes de Mileto

Anaxímenes (588-524 a.C.) admitia que a origem de todas as coisas é indeterminada. entretanto, recusava-se a atribuir-lhe o caráter oculto de elemento situado fora dos limites da observação e da experiência sensível.
Tentando uma possível conciliação entre as concepções de Tales e as de Anaximandro, concluiu ser o ar o princípio de todas as coisas. Isso porque o ar representa um elemento “invisível e imponderável, quase inobservável, e, no entanto, observável: o ar é a própria vida, a força vital, a divindade que “anima” o mundo, aquilo que dá testemunho à respiração”.

Texto complementar sobre Tales

A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição de que a água é a origem e o seio materno de todas as coisas. Será realmente necessário parar aqui elevar esta idéia a sério? Sim, e por três razões: primeiro, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagens e fabulas; e, finalmente, porque ela contém, embora em estado de crisálida (estado latente, prestes a se transformar), a idéia de que “Tudo é um”. A primeira dessas três razões ainda deixa Tales na comunidade dos homens religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e mostra-o como investigador da natureza, mas, a terceira faz de Tales o primeiro filósofo grego.

F. NIETZSCHE. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos.


Pitágoras de Samos: o culto da matemática

Pitágoras (570-490 a.C.) nasceu na ilha de Samos, na costa jônica, não distante de Mileto. Por volta de 530 a.C., sofreu perseguição política por causa de suas idéias, sendo obrigado a deixar sua terra de origem. Instalou-se, então, em Crotona, sul da Itália, região conhecida como Magna Grécia.
Em Crotona fundou uma poderosa sociedade de caráter filosófico e religioso e de acentuada ligação com as questões políticas. Depois de exercer, por longos anos, considerável influência política na região, a sociedade pitagórica foi dispersada por opositores, e o próprio Pitágoras foi expulso de Crotona.
Para Pitágoras, a essência de todas as coisas reside nos números, os quais representam a ordem e a harmonia. Assim, a essência dos seres, a arché, teria uma estrutura matemática da qual derivariam problemas como: finito e infinito, par e ímpar, unidade e multiplicidade, reta e curva, círculo e quadrado etc.
Pitágoras dizia que no “fundo de todas as coisas” a diferença entre os seres consiste, essencialmente, em uma questão de números (limite e ordem das coisas).
As contribuições da escola pitagórica podem ser encontradas nos campos da matemática (lembre-se do célebre teorema de Pitágoras), da música e da astronomia. A essas contribuições junta-se uma série de crenças místicas relativas à imortalidade da alma, à reencarnação dos pecadores, à prescrição de rígidas condutas morais etc.

Heráclito de Éfeso: o movimento perpétuo

Nascido em Éfeso, cidade da região jônica, Heráclito é considerado um dos mais importantes filósofos pré-socráticos. A data de seu nascimento e a de sua morte não são conhecidas. Há referências históricas de que por volta do ano 500 a.C. estava em plena “flor da idade”.
Heráclito é considerado o primeiro grande representante do pensamento dialético. Concebia a realidade do mundo como algo dinâmico, em permanente transformação. Daí sua escola filosófica ser chamada de mobilista (de movimento). Para ele, a vida era um fluxo constante, impulsionado pela luta de forças contrárias: a ordem e a desordem, o bem e o mal, o belo e o feio, a construção e a destruição, a justiça e a injustiça, o racional e o irracional, a alegria e a tristeza etc. Assim, afirmava que “a luta é a mãe, rainha e princípio de todas as coisas”. É pela luta das forças opostas que o mundo se modifica e evolui.
Atribuem-se a Heráclito frases marcantes , de sentido simbólico, utilizadas para ilustrar sua concepção sobre o fluxo e a movimentação das coisas, o constante vir-a-ser, a eterna mudança, também chamada devir:

“Não podemos entrar duas vezes no mesmo rio, pois suas águas se renovam a cada instante. Não tocamos duas vezes o mesmo ser, pois este modifica continuamente sua condição.”

Assim, Heráclito imaginava a realidade dinâmica do mundo sob a forma de fogo, com chamas vivas e eternas, governando o constante movimento dos seres.


Os pensadores eleáticos: Reflexões sobre o ser e o conhecer

As diversas cosmologias que acabamos de estudar despertaram, na época, uma nova questão. Por que tanta divergência? Por que tantas opiniões contrárias?
Heráclito de Éfeso, como vimos, acreditava que a luta dos contrários formava a unidade do mundo. Já para os pensadores da cidade de Eléia, a partir de seu principal expoente, Parmênides, os contrários jamais poderiam coexistir. Os dois pensadores representam, portanto, pólos extremos do pensamento filosófico.

Parmênides de Eléia

Nascido em Eléia, na Magna Grécia, litoral oeste da península itálica, Parmênides (510-470 a.C.) tornou-se célebre por ter feito oposição a Heráclito.
Parmênides defendia a existência de dois caminhos para a compreensão da realidade. O primeiro é o da Filosofia, da razão, da essência. O segundo é o da crendice, da opinião pessoal, da aparência enganosa, que ele considerava a via de Heráclito.
Segundo Parmênides, o caminho da essência nos leva a concluir que na realidade: a) existe o ser, e não e concebível sua não existência; b) o ser é; o não-ser não é.
Ao refletir sobre o ser, pela via da essência, o filósofo eleático concluiu que o ser é eterno, único, imóvel e ilimitado. Essa seria a via da verdade pura, a via a ser buscada pela ciência e pela Filosofia. Por outro lado, quando a realidade é pensada pelo caminho da aparência, tudo se confunde em função do movimento, da pluralidade e do devir (vir-a-ser).
Assim, Parmênides formulou os atributos do ser puramente lógico e negou-se a reconhecer como verdadeiros os testemunhos ilusórios dos sentidos. Mas como explicar então o movimento e a diferença? Parmênides afirmava que o ser é único, imutável etc, mas manifesta-se para nós de vários modos. O esforço de toda sabedoria é, pois, para Parmênides, sistematizar e tornar pensável o caos que nos aparece, ou seja, colocar pelo pensamento uma ordem no caos.

Zenão de Eléia

Discípulo de Parmênides, Zenão de Eléia (488-430 a.C.) elaborou argumentos para defender as idéias de seu mestre. Com eles pretendia demonstrar que a própria noção de movimento era inviável e contraditória.
Desses argumentos, talvez, o mais célebre seja o paradoxo de Zenão, que se refere à corrida de Aquiles contra uma tartaruga. Dizia Zenão:
a) Se, na corrida, a tartaruga saísse à frente de Aquiles, para alcançá-la, ele precisaria percorrer uma distância superior à metade da distância inicial que os separava no começo da competição.
b) Entretanto, como a tartaruga continuaria se locomovendo, essa distância, por menor que fosse, teria se ampliado. Aquiles deveria percorrer, então, mais da metade dessa nova distância.
c) A tartaruga continuaria se movendo, e a tarefa de Aquiles se repetiria ao infinito, pois o espaço pode ser divido em infinitos pontos.
Na observação que fazemos do mundo, através dos nossos sentidos, é evidente que os argumentos de Zenão não correspondem à realidade. Entretanto, esses argumentos demonstram as dificuldades pelas quais passou o pensamento racional para compreender conceitos como movimento, espaço, tempo e infinito.

Empédocles de Agrigento: a unidade de tudo aquilo que se ama

Nascido em Agrigento, sul da Sicília, Empédocles (490-430 a.C.) esforçou-se para conciliar as concepções de Parmênides e Heráclito. Aceitava de Parmênides a racionalidade que afirma a existência e permanência do ser (o ser é), mas procurava encontrar uma maneira de tornar racional os dados captados por nossos sentidos.
Defendia a existência de quatro elementos primordiais, que constituem as raízes de todas as coisas percebidas: o fogo, a terra, a água e o ar. Esses elementos são movidos e misturados de diferentes maneiras em função de dois princípios universais opostos:
· amor (philia, em grego) — responsável pela força de atração e união e pelo movimento de crescente harmonização das coisas;
· ódio (neikos, em grego) — responsável pela força de repulsão e desagregação e pelo movimento de decadência, dissolução e separação das coisas.
Para ele, todas as coisas existentes na realidade estão submetidas às forças cíclicas desses dois princípios.

Demócrito de Abdera: o átomo e a diversidade

Nascido em Abdera, cidade situada no litoral entre a Macedônia e a Trácia, Demócrito (460-370 a.C.) foi discípulo de Leucipo (fundador da escola atomista) e um pensador brilhante. Só a tradição impõe o título de pré-socrático a este pensador importante, nascido e morto depois de Sócrates.
Responsável pelo desenvolvimento do atomismo, Demócrito afirmava que todas as coisas que formam a realidade são constituídas por partículas invisíveis e indivisíveis. Essas partículas forma chamadas átomos, termo grego que significa “não-divisível” (a = negação; tomo = divisível).
Para ele, o átomo seria o equivalente ao “conceito de ser” em Parmênides. Além dos átomos existiria no mundo real o vácuo, que representaria a ausência de ser ( o não ser). Devido à existência do vácuo, o movimento do ser torna-se possível. O movimento dos átomos permite infinita diversidade de composições. Demócrito distinguia três fatores básicos para explicar as diferentes composições dos átomos:
· figura — a forma geométrica de cada átomo;
· ordem — a seqüência espacial dos átomos de mesma figura;
· posição — a localização espacial dos átomos.
Para Demócrito, é o acaso ou a necessidade que promove a aglomeração de certos átomos e a repulsão de outros. O acaso é o encadeamento imprevisível de causas. A necessidade é o encadeamento previsível e determinado entre causas. As infinitas possibilidades de aglomeração dos átomos explicam a infinita variedade de coisas existentes.
A principal contribuição trazida pelo atomismo de Demócrito à história do pensamento é a concepção mecanicista, segundo a qual “tudo o que existe no universo nasce do acaso ou da necessidade”. Isto é, “nada nasce do nada, nada retorna ao nada”. Tudo tem uma causa. E os átomos são a causa última do mundo.




Questões:


1. Por que os primeiros filósofos são chamados de pré-socráticos?
2. O que os filósofos de Mileto tentaram descobrir?
3. Que conclusão chegou Tales acerca do princípio substancial?
4. E quanto a Anaximandro, o que ele supunha que seria o princípio substancial?
5. Como Anaxímenes achou possível conciliar as idéias de Tales e Anaximandro?
6. Reflita: Por que a idéia de que “Tudo é Um” faz de Tales o primeiro filósofo?
7. Segundo Pitágoras o que diferencia todas as coisas?
8. O que significa pensamento dialético?
9. Qual era para Heráclito o princípio de todas as coisas?
10. Por que Heráclito afirmava que não podemos entrar num rio duas vezes?
11. Qual elemento da Natureza Heráclito acreditava ser o elemento primordial?
12. Quais as características do ser para Parmênides?
13. Se Parmênides se recusava a aceitar como verdadeiros os testemunhos dos sentidos, o que ele considerava com a verdade pura?
14. Como explicava Parmênides o movimento e a pluralidade da vida?
15. Descreva brevemente o paradoxo de Zenão.
16. Quais os quatro elementos que Empedocles pensava serem os elementos primordiais?
17. Que princípios os colocavam em movimento?
18. Como era formada a realidade para Demócrito?
19. Como Demócrito explicava que na Natureza as coisas possuem características tão diferentes?
20. O que significa a concepção mecanicista atribuída a Demócrito?

2. Do Mito à Filosofia




A palavra Filosofia

A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio.
Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.

O nascimento da Filosofia

Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.
Assim, os primeiros filósofos se perguntavam sobre coisas como:
Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
Mas por que os mitos perderam, para alguns desses homens gregos, sua capacidade de explicar a origem do mundo, da realidade, das mudanças etc? Será que essa mudança se deu de forma brusca ou ocorreu gradualmente? O que aconteceu neste período histórico para que os homens passassem a buscar novas formas de responder às questões sobre a origem das coisas?

Mito e Filosofia

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
Quem narra o mito é o aedo ou poeta-rapsodo. Esses aedos perambulavam pelas cidades cantando seus poemas. Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. Diz-se que o poeta é inspirado pelas Musas, filhas da deusa Mnemosyne (a Memória). Das musas vêm a música.
Mas se a Filosofia inicialmente se preocupou em descrever a origem das coisas, assim como os mitos, ela procurava fazê-lo de modo racional, e por isso era uma cosmologia. Ao contrário, os mitos eram cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
Para entender como se deu essa passagem do pensamento mítico ao racional, ou da cosmogonia à cosmologia, é preciso entender o ambiente grego.
Dois foram os principais poetas gregos: Homero e Hesíodo.
De Homero nos ficaram dois poemas, que chamamos de epopéias. As epopéias narram a saga de heróis e deuses. A Ilíada, mais antiga, narra a guerra de Tróia, tendo como personagem principal Aquiles. A Odisséia narra as aventuras de Odisseu ou Ulisses pelos mares ao tentar voltar para casa da guerra de Tróia.
Homero recebeu de fontes estrangeiras (egípcios, caldeus, persas etc) várias lendas sobre a origem do mundo, dos deuses, dos heróis e de seus feitos. Mas ele empresta a esses deuses um traço um pouco diferente. Os deuses, que eram criaturas monstruosas e infernais, aparecem em Homero com formas humanas ou semi-humanas. Chamamos a isso antropomorfismo (anthropos = homem; morphé = forma). Eliminou igualmente do culto aos deuses as práticas mágicas. Essa proximidade com o homem torna o mundo divino menos obscuro, mais compreensível e inteligível. Assim os deuses não são mais atemorizantes, mas podem ser conhecidos e colocados sob a forma de um discurso mais próximo do racional. Ainda, porém, as leis que organizam o cosmo ficam sujeitas às paixão dos deuses que possuem desejos, ódios, ciúmes, assim como os homens. No entanto já em Homero aparece a supremacia de Zeus sobre os outros deuses, ordenando a ação contraditória e passional dos outros deuses.
De Hesíodo temos Os Trabalhos e os Dias e a Teogonia. Esta última relata a origem dos deuses. Tomando como ponto de partida velhos mitos, que coordena e enriquece, Hesíodo traça uma genealogia sistemática das divindades. Nessa genealogia sistemática percebe-se o esboço de um pensamento racional sustentado pela exigência de causalidade, a abrir caminho para as posteriores cosmologias filosóficas. Em Os Trabalhos e os Dias Hesíodo narra a origem e a decadência dos homens e suas eras. No início, a raça de ouro vivia sem fadigas, depois veio uma raça inferior, de prata, depois uma de bronze, onde há violência e guerras, e enfim a raça de ferro, que é a época de Hesíodo, de incessantes trabalhos e penas e onde mesmo os irmãos e amigos se tornam traidores (de fato o irmão de Hesíodo o traiu).
Como se vê, na obra de Hesíodo o caráter de racionalidade se desenvolve, ao procurar uma explicação causal para os acontecimentos: as ações surgem umas das outras de acordo com uma lógica.
Com os estudos dos antropólogos e dos historiadores onde ficou clara a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade, pode-se dizer que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles. Mas, ao mesmo tempo, no tempo de Tales, a Grécia viveu seu apogeu econômico, político e cultural, criando situações novas que deram um grande impulso ao surgimento da Filosofia.

Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
· as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
· a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
· a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
· o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
· a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
· a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia: 1) A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. 2) O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer. Agora, com a política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. 3) A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir é fundamental para a Filosofia.



Questões:

1. Qual o significado da palavra Filosofia?
2. Quem usou pela primeira vez a palavra Filosofia e por que?
3. Onde e quando surgiu a Filosofia? Quem foi o primeiro filósofo?
4. Qual o conteúdo da Filosofia nascente?
5. O que significa cosmologia?
6. O que é um mito?
7. O que é um aedo ou poeta rapsodo?
8. O que significa cosmogonia? O que significa teogonia?
9. O que narram a Ilíada e a Odisséia de Homero?
10. O que narram Os Trabalhos e os dias e a Teogonia de Hesíodo?
11. Qual a contribuição do poeta Homero para criar um ambiente cultural mais racional na Grécia?
12. Qual a contribuição do poeta Hesíodo para a racionalização da cultura grega?
13. Quais as principais condições históricas para que a Filosofia surgisse entre os gregos entre os séculos VII e VI a.C?
14. Como que a invenção da política ajudou o desenvolvimento da racionalidade que deu origem à Filosofia?

1. Para que Filosofia?

“Filosofar é reaprender a ver o mundo”
Maurice Merleau-Ponty

Nossas crenças costumeiras — as evidências do cotidiano

Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como “que horas são?”, ou “que dia é hoje?”. Dizemos frases como “ele está sonhando”, ou “ela ficou maluca”. Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, “esta casa é mais bonita do que a outra” e “Maria está mais jovem do que Glorinha”.
Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando digo “ele está sonhando”, referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.
Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão.
A frase “ela ficou maluca” contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.
Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos assim que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.
Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita[1] de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na quantidade, na qualidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira.

E se não for bem assim?

Porém, há momentos em que nossas crenças mais óbvias são contrariadas.
Vemos que o Sol nasce a leste e se Põe a oeste; que sua presença é o dia e sua ausência é a noite. Nossos olhos nos fazem acreditar que o Sol se move à volta da Terra e que esta permanece imóvel. Quando, durante muitas noites seguidas, acompanhamos a posição das estrelas no céu, vemos que elas mudam de lugar e acreditamos que se movem à nossa volta, enquanto a Terra permanece na imobilidade.
No entanto, a astronomia demonstra que não é isso que acontece. A Terra é um planeta num sistema cuja estrela central se chama Sol, ou seja, a Terra é um planeta do sistema solar, e ela, juntamente com outros planetas, é que se move à volta do Sol, num movimento de translação.
Além desse movimento, ela realiza um outro, o de rotação em torno de seu eixo invisível. O movimento de translação explica a existência do ano, e o de rotação explica a existência do dia e da noite. Assim, há uma contradição entre nossa crença na imobilidade da Terra e a informação astronômica sobre os movimentos terrestres.
Esses conflitos entre várias de nossas crenças e um saber estabelecido indicam a principal circunstância em que somos levados a mudar de atitude. Quando uma crença contradiz outra ou parece incompatível com outra, ou quando aquilo em que sempre acreditamos é contrariado por outra forma de conhecimento, entramos em crise.
Nesses momentos de crise, algumas pessoas se esforçam para fazer de conta que não há nenhum problema e vão levando a vida como se tudo estivesse “muito bem, obrigado”. Outras, porém, são impelidas a indagar qual é a origem, o sentido e a realidade de nossas crenças costumeiras.

A atitude filosófica

Imaginemos, então, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de perguntar “que horas são?” ou “que dia é hoje?”, perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer “está sonhado” ou “ficou maluca”, quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?
Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas e afirmações por outras. Ao invés de “esta casa é mais bonita do que aquela” e “Maria está mais jovem do que Glorinha” perguntasse o que é o belo? O que é a juventude? O que é mais e o que é menos? O que é a quantidade? O que é a qualidade? Ao invés de afirmar que gosta de alguém porque tem os mesmos valores, gostos, preferências, preferisse analisar o que é um valor, o que é moral, o que é vontade, o que é arte, o que é liberdade, o que é o amor, o que são os sentimentos, o que são os pensamentos.
Alguém que tomasse essa decisão estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças ou sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é a Filosofia?” poderia ser: a decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram certa vez a um filósofo: “Para que filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.

Questões:

1) Por que Chauí afirma que nossas afirmações contêm silenciosamente várias crenças?
2) O que são as nossas crenças costumeiras?
3) Em que momento passamos da atitude costumeira à atitude filosófica?
4) O que é a atitude filosófica?
5) O que é a Filosofia?
6) Para que Filosofia?
7) Comente a frase da epígrafe: “Filosofar é reaprender a ver o mundo”.

[1] adj. 1 não formalmente expresso 1.1 não traduzido por palavras; silencioso, calado 1.2 que não é preciso dizer por estar implícito ou subentendido 2 p.us. onde não há som, ruído, rumor; sossegado, tranqüilo 3 que não se revela; recôndito, secreto, oculto