quarta-feira, 13 de agosto de 2008

2. Do Mito à Filosofia




A palavra Filosofia

A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio.
Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.

O nascimento da Filosofia

Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.
Assim, os primeiros filósofos se perguntavam sobre coisas como:
Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
Mas por que os mitos perderam, para alguns desses homens gregos, sua capacidade de explicar a origem do mundo, da realidade, das mudanças etc? Será que essa mudança se deu de forma brusca ou ocorreu gradualmente? O que aconteceu neste período histórico para que os homens passassem a buscar novas formas de responder às questões sobre a origem das coisas?

Mito e Filosofia

Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
Quem narra o mito é o aedo ou poeta-rapsodo. Esses aedos perambulavam pelas cidades cantando seus poemas. Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. Diz-se que o poeta é inspirado pelas Musas, filhas da deusa Mnemosyne (a Memória). Das musas vêm a música.
Mas se a Filosofia inicialmente se preocupou em descrever a origem das coisas, assim como os mitos, ela procurava fazê-lo de modo racional, e por isso era uma cosmologia. Ao contrário, os mitos eram cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
Para entender como se deu essa passagem do pensamento mítico ao racional, ou da cosmogonia à cosmologia, é preciso entender o ambiente grego.
Dois foram os principais poetas gregos: Homero e Hesíodo.
De Homero nos ficaram dois poemas, que chamamos de epopéias. As epopéias narram a saga de heróis e deuses. A Ilíada, mais antiga, narra a guerra de Tróia, tendo como personagem principal Aquiles. A Odisséia narra as aventuras de Odisseu ou Ulisses pelos mares ao tentar voltar para casa da guerra de Tróia.
Homero recebeu de fontes estrangeiras (egípcios, caldeus, persas etc) várias lendas sobre a origem do mundo, dos deuses, dos heróis e de seus feitos. Mas ele empresta a esses deuses um traço um pouco diferente. Os deuses, que eram criaturas monstruosas e infernais, aparecem em Homero com formas humanas ou semi-humanas. Chamamos a isso antropomorfismo (anthropos = homem; morphé = forma). Eliminou igualmente do culto aos deuses as práticas mágicas. Essa proximidade com o homem torna o mundo divino menos obscuro, mais compreensível e inteligível. Assim os deuses não são mais atemorizantes, mas podem ser conhecidos e colocados sob a forma de um discurso mais próximo do racional. Ainda, porém, as leis que organizam o cosmo ficam sujeitas às paixão dos deuses que possuem desejos, ódios, ciúmes, assim como os homens. No entanto já em Homero aparece a supremacia de Zeus sobre os outros deuses, ordenando a ação contraditória e passional dos outros deuses.
De Hesíodo temos Os Trabalhos e os Dias e a Teogonia. Esta última relata a origem dos deuses. Tomando como ponto de partida velhos mitos, que coordena e enriquece, Hesíodo traça uma genealogia sistemática das divindades. Nessa genealogia sistemática percebe-se o esboço de um pensamento racional sustentado pela exigência de causalidade, a abrir caminho para as posteriores cosmologias filosóficas. Em Os Trabalhos e os Dias Hesíodo narra a origem e a decadência dos homens e suas eras. No início, a raça de ouro vivia sem fadigas, depois veio uma raça inferior, de prata, depois uma de bronze, onde há violência e guerras, e enfim a raça de ferro, que é a época de Hesíodo, de incessantes trabalhos e penas e onde mesmo os irmãos e amigos se tornam traidores (de fato o irmão de Hesíodo o traiu).
Como se vê, na obra de Hesíodo o caráter de racionalidade se desenvolve, ao procurar uma explicação causal para os acontecimentos: as ações surgem umas das outras de acordo com uma lógica.
Com os estudos dos antropólogos e dos historiadores onde ficou clara a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade, pode-se dizer que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles. Mas, ao mesmo tempo, no tempo de Tales, a Grécia viveu seu apogeu econômico, político e cultural, criando situações novas que deram um grande impulso ao surgimento da Filosofia.

Condições históricas para o surgimento da Filosofia

Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
· as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
· a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
· a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
· o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
· a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
· a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia: 1) A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. 2) O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer. Agora, com a política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. 3) A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir é fundamental para a Filosofia.



Questões:

1. Qual o significado da palavra Filosofia?
2. Quem usou pela primeira vez a palavra Filosofia e por que?
3. Onde e quando surgiu a Filosofia? Quem foi o primeiro filósofo?
4. Qual o conteúdo da Filosofia nascente?
5. O que significa cosmologia?
6. O que é um mito?
7. O que é um aedo ou poeta rapsodo?
8. O que significa cosmogonia? O que significa teogonia?
9. O que narram a Ilíada e a Odisséia de Homero?
10. O que narram Os Trabalhos e os dias e a Teogonia de Hesíodo?
11. Qual a contribuição do poeta Homero para criar um ambiente cultural mais racional na Grécia?
12. Qual a contribuição do poeta Hesíodo para a racionalização da cultura grega?
13. Quais as principais condições históricas para que a Filosofia surgisse entre os gregos entre os séculos VII e VI a.C?
14. Como que a invenção da política ajudou o desenvolvimento da racionalidade que deu origem à Filosofia?

Nenhum comentário: